Perfil

1ª do singular

Eu sou o fosco, eu sou o opaco. Eu sou uma imagem no paint, aguardando uma vetorização que nunca vai chegar. Eu sou o imutável. Sou molécula de água. Constante, incessante, faminto e famigerado. De fábulas de vidas sou alimentado. Sou o caput e a alínea, mas não sei advogar. Sou grão em grão, de bar em bar. Sou um bisturi, um bisturi desafiado, que não corta, não derrama sangue e não deixa de ser um bisturi. Não perde o desafio. Sou um instrumento desafinado, ressonante e de pura distorção. Sou soldado, sou aliteração. Sou um escorrega e as subidas e descidas e um tobogã. Sou metralhadora alemã, brincando de roleta russa. Sou as curvas da estrada, pra quem já está sem freio. Sou caolho, sou cego, não nego, não ceio, sem receio. Sou a balsa do viajante que não deveria viajar. Do filho que parte, da mãe que quer ficar. Sou a grade da cela a ser selada e cerrada, como um selo mal impresso e ornamentado de uma carta que nunca vai chegar. Sou fogo-fátuo, de fim mútuo, pairando, a assombrar os de alma pura e corromper com luz; a iluminar os perversos. Não vislumbro ninguém. Sou fiador, fiel e fidelizado. Sou margem de rio, de metal, marginalizado. Sou dividia que não foi paga. Sou bufão que não vaga, não se vê, não te vê, não existe, mas insiste em insistir. Sou misericórdia de quem não sabe como dar veredicto. Sou cimento, ciumento, entre o concreto. E o abstrato, o lápis do arquiteto. Sou glamour de grinalda encurralado num baú de poses e posses, de quem decidiu ganhar a vida de forma honesta, vendendo, se vendou, se vendeu. Sou jogado, atirado à minha própria sorte, sou forte, fonte de bel-prazer e de morte. Sou cara e coroa e a escória de um coração, de alguém que não soube apostar em mim. Sou bajulação e a luz do abajur mais apagado. Sou fosco. Sou opaco. Sou um só. Só e sedento, lançado ao vento como palha às chamas. Sedento tenho sede de vida, de momento, de ferida de ferro e de cicatriz, a viver por um triz entre o fosco e o opaco do rosto. Sedento e só. Como o pó por debaixo do lustre, como a luz da passagem por debaixo do tapete. Da ponte, do farol, da lanterna e do verbete. Sedento e só, à sós, sem voz nem vocação. Sou fosco. Sou opaco. Sou um só. Só.

Criado em: 10 de dezembro de 2010, sexta-feira.

Uma resposta to “Perfil”

  1. Alyne Mantoan dezembro 21, 2010 às 2:46 am #

    Fiquei extremamente emocionada!

    Este texto, esta expressão, esta arte, esta poesia, é harmonioso(a) e resplandescente.
    Incrivelmente lindo e inspirador…

    Gustavo ou simplesmente Jim, jamais deixe de mostrar seu maior dom… que é escrever!

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